Bula digital de medicamentos: Tecnologia VS Retrocesso?

Publicação: 25 de janeiro de 2024 | Autora: Daniela Guarita Jambor

 

Bula digital está com novo capítulo no Brasil: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (“ANVISA”) iniciou a Consulta Púbica 1.224/23 para discutir as “diretrizes transitórias para a bula digital e demais informações eletrônicas e para dispensa da bula impressa nas embalagens de determinados medicamentos” (“CP”). A ANVISA aceitará contribuições até 19/03/24. Mas, o que presenta a dispensa de bula impressa aos consumidores?

 

De um lado, a evolução tecnológica, de outro lado, retrocesso aos consumidores? De um lado, praticidade e informação a qualquer tempo, de outro lado, exclusão tecnológica / dificuldades em acesso à conectividade digital? De um lado, vitória ao meio ambiente; de outro lado, agravamento da saúde pública com potencial aumento das consequências da automedicação “desinformada”? Há solução intermediária: convivência pacífica entre bulas digitais e impressas, considerando o background da população brasileira em ritmo de acelerado envelhecimento e índices consideráveis de analfabetismo digital? Passemos a isso.

 

A discussão se iniciou em maio de 2022 com a publicação da Lei 14.338/22, que prevê a bula digital de medicamentos. Em resumo: prevê as bulas digitais, determina o conteúdo e possibilita a ANVISA estipular quais medicamentos terão apenas um tipo de bula (digital ou impressa). A crítica foi grande: válidos prós e contras, aguardando o desfecho com o posicionamento “final” da ANVISA, que se dará apenas com a publicação de norma definitiva.

 

O desfecho parcial apareceu recentemente: a CP detalha a existência da bula digital no Brasil, em caráter transitório (proposto até dezembro/27). A CP propõe código QR na embalagem dos medicamentos; possibilita a transmissão de outras informações, que não publicitárias, via o código QR; divide em fases a implementação das bulas digitais no Brasil. Com relação às fases, a Fase 1 abrangerá apenas amostras grátis e medicamentos destinados exclusivamente ao uso hospitalar, clínicas, ambulatórios e serviços de atenção domiciliar, exceto farmácias e drogarias. Esse grupo teria sido selecionado por se tratar de medicamentos destinados a profissionais de saúde. Já, a Fase 2 abrangerá os medicamentos estabelecidos pós nova consulta pública e aprovação da ANVISA (os critérios para isso ainda são indefinidos, provavelmente determinados apenas e quando a ANVISA vier a estabelecer essa lista).

 

Críticas voltam à baila: implementar a bula digital de maneira exclusiva para medicamentos específicos pode representar retrocesso aos consumidores, tendo em vista a dificuldade de acesso à internet, conectividade significativa e exclusão digital brasileira. Pesquisas recentes demonstraram que há exclusão digital no Brasil (isto é, dificuldades de acesso às tecnologias da informação e de uso da internet) e que, parte dos brasileiros que possuem acesso à internet, não necessariamente possuem conectividade significativa (qualidade de acesso à internet). É indiscutível que classes de menor renda e escolaridade possuem menor acesso à internet de qualidade, restringindo o acesso a serviços públicos e benefícios sociais, sendo também os mais dependentes do Sistema Único de Saúde. Além disso, há impactos diretos na saúde dos consumidores: nas localidades em que há menor acessibilidade, a bula acaba sendo o meio de contato direto dos consumidores com informações seguras e de qualidade dos medicamentos (indicações, modo de uso e contraindicações). A automedicação existe no Brasil e, não raras vezes, leva a intoxicação do consumidor.

A população idosa também deve ser levada em consideração: aqui, o acesso a informações claras e precisas de medicamentos se dá via bula impressa. Lembrando que a população idosa é a mais suscetível a polifarmácia (uso simultâneo de vários medicamentos), que nem sempre podem ser assistidos por profissional de saúde ou cuidadores. É indiscutível e inevitável que os idosos terão dificuldades em acessar bula digitais, de maneira que a implementação de uso exclusivo de bula digitais pode representar um (grande) risco a essa população.

 

Por outro lado, há pontos positivos às bulas digitais: diminuição de custos de produção; benefícios ao meio ambiente; fácil acesso às informações por parte dos consumidores; informações “portáteis”; aumento de fornecimento de informações sobre o medicamento, com a disponibilidade adicional de dados científicos (não promocionais); acesso às informações atualizadas instantaneamente.

 

Melhorar a acessibilidade às informações, via leitura dinâmica por robôs e vídeos com as informações da bula, pode ser benéfico aos idosos e pessoas com deficiências. Aprimoramento do conteúdo, formato e meio de disponibilização. Assim, as informações eletrônicas dos medicamentos devem ser desenvolvidas para melhorar a segurança do paciente, favorecer a adesão ao tratamento e contribuir com melhorias de práticas do autocuidado.

 

Pensemos: o direito à informação, fundamental, indispensável e de grande relevância, dos medicamentos é instrumentalizado via bula de medicamento. Estaríamos invertendo a balança de obrigações do fornecedor-consumidor? Isto é, hoje, defende-se e reconhece-se que o fornecedor é o elo responsável por informar corretamente o consumidor. Na medida em que o fornecedor disponibilizar informações online sobre o medicamento, teria ele cumprido a sua obrigação, transferindo ao consumidor a responsabilidade de acessar tais informações? Em outras palavras, a medida exclusiva de disponibilizar online a bula seria suficiente para afastar responsabilidades do fornecedor, em especial de garantir o direito à informação? Muito cedo para se cravar posição, bem como há a necessidade de se considerar o caso a caso.

 

Pois bem. A regulação não pode ser vista como vilã ou agravar as desigualdades no acesso aos cuidados, em especial dos mais vulneráveis e dos que não tem acesso à conectividade. A ANVISA andou bem: trata-se de um projeto piloto com fases subsequentes, sendo que a abordagem progressiva possibilitará análise gradual e aprofundada dos impactos regulatórios e consumeristas. Ambiente de experimentação e aprendizados, que não poderão ser ignorados quando da regulamentação definitiva do tema.

 

Entendemos e defendemos que há a necessidade de cautela durante a experimentação e transição, considerando infraestrutura tecnológica, desigualdades digitais existentes no Brasil. Neste sentido, vai bem a proposta da ANVISA: existência de garantias de disponibilidade da bula impressa sempre quando solicitada. No fundo, é garantir a segurança e eficiência do direito à informação sobre os medicamentos.

 

 

Daniela Guarita Jambor | Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Life Sciences & Healthcare. Fundadora do Instagram Life Sciences & Law (@lifescienceslaw). Advogada.

SOBRE NÓS

BRASILCON

CNPJ - 68.484.351/0001-59

SRTVS Quadra 701, Bloco O, nº 110, Sala 399-A
Ed. Novo Centro Multiempresarial - Asa Sul - Brasília/DF - CEP 70340-000

Telefone: +55 (61) 3225-4241
Whatsapp: +55 (61) 98128-5921

E-mail: brasilcon.consumidor@gmail.com

Horário de funcionamento: Segunda a sexta das 9h às 18h

Entre em contato

Segurança: Qual a soma de cinco + 3?

Cron Job Iniciado